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domingo, 22 de março de 2009

A Morte Prematura


"O Sètimo Selo", Bergman











Caminhando astuta sobre túmulos vazios
Lá vinha a morte prematura em golpes de misericórdia
Os cordiais espíritos vagando às trevas de ar impuro e terreno
Consolavam-se às escrituras lapidais:
Aqui jaz aquele homem
Adiante jaz uma mulher
O anjinho recém-nascido...

– Nossa, quanta gente morta!

Vestida de preto, com seu lendário machado
A criatura ancestral rondava impávida, ansiosa por novas vítimas
“Que solidão morrer nessa hora...”
Os espíritos se divertiam sobrevoando coroas de flores
(Algumas ainda bem fresquinhas) O sol se punha, e então
Sentimentais que eram (“Ai, que saudade do meu benzinho”)
Punham-se a chorar, os espíritos
“Ó, quão surpreendente é a morte
E sobrenatural”
Ela, a morte, nem aí: só deu tempo de o padre benzer o infeliz
Que expirou feito vaca com a lâmina no peito!

Jardim dos Suspiros


“Artrópode necrófago”, parecia ouvir do próprio sinuoso escorpião, ali, mexendo com a calda. Revelando sua natureza sobre a lápide empoeirada.

A lua monge longe lançava grossos e densos raios prateados sobre o meu peito arfado, minha tez gelada. Meu obscuro escorpionídeo, ó, estamos somente nós dois nesta necrópole desértica, e eu amo você, meu bichinho, eu sou você! “Ah, é?”

Segui-o, o olhar esbugalhado, apreensivo: o inseto lacrau fugindo por entre as fendas do túmulo, os feixes de luz, a lua com sua luz fria e cinêmica, os fantasmas de anjos, jesus, meu peito batendo rápido e o meu queixo, meus dentes rangiam. Meu coração carregava as mágoas do sexo.

“Demônio antropófago!” Mas quem disse isso? Meu deus, foi você, estranho aracnídeo!

A Epopéia dos Ratos


A banda Sangue de Cristo, Augusto, Sebage, Jatiúca e Muniz, Maceió, 1986, foto de Vinicius Lopes


Do livro "A MELANCIA - Filmes Eróticos e algumas Epifanias"

Introdução (Síntese)

Rat and the cat – who’s the cat, me? Gato, mouse, you mouse! “Sinto falta do quê, de você, sinto sua falta? (...) Ah, sinto tanta falta de você, de você, de você!” (Revólver) (Antiquados) (Hum) “Bem-aventurada esperança, por favor, não me deixe ao largo, mouse, querido, chega de maus-tratos.” Me sinto tão fraco: estes finos fios invisíveis e cortantes me sangrando, tão apertados em volta do meu corpo, é a minha prisão, será? Não ando armado (Revolver, Beatles, Walter Franco), você e eu a toda velocidade, crescendo, não estou certo, deitar-nos-emos nus de lado? Comum esquadro, mal-formado, deformado, você, também: desinformados. “Me deixa, olha, tô arretado, tem jeito?” Otário (!), quem, eu? (Quem?) Eu?

A Fábula da Pequena Pena

Cena 1


Uma pequenina pluma negra caiu no parapeito da janela
Do meu quarto, agora, ou melhor, que horas, “eu ouço tiros todas as noites” Eu ouço o velho dizer num filme na TV, “eu já vi gente morta”, ele disse
O pequeno, que horas? “Pouco mais de dez, eu acho”
Acho que desfalecerei, vou morrer, mas não agora, eu disse
Que não gostava de campari, campari, vermute, meu deus, eu lembro
Dos cristais: Clarice L. com um pedacinho do livro refletindo
Um mistério: observando aguda a câmera fotográfica pelos reflexos
Do prisma (Pink Floyd): “Ai, ai, ai, como eu gosto disso”
Mas não desse cheiro à janela, mas o que vem a ser isso?

INTERVALO
(pesquisa de registros)

O DRAMA EM SI
(no bom sentido: tecno e romântico)

Cena 2 (Epílogo)

A pena, pluma negra (estragadinha) tem
Um significado, não tem nada a ver com esse aroma enjoado
Das cozinheiras à janela, mas já passou. “Ah, mas aonde há poesia aqui?”
E onde estava o meu gin na outra noite, ham, um dry martini
Sem gelo, é claro, por favor, outro bem fraquinho pro meu amigo fresquinho
“Hey, Joni, don’t want a little more?” My mouse, yeah, yeah, Mickey Mouse
“Esse é o especial que vai ao ar no Natal”, Marisa explicava a Cris
Na MTV, te vejo no Reveillon, eu vou pro Rio (a lenda do Rio)

Sobre Questiúnculas, mas já sem mais Nada pra dizer


Maceió, 2008, foto do celular de Vinícius Lopes










Esquálido seu brilho magnético no olhar – “brilho magnético, James Bond! Miúcha!” Eu olhava e nada de me corresponder, estranho olhar esse no ar – algo comedido, aliás, era-o todo de uma palidez, e o luar. “Venus de Millus, as pupilas do bom pastor, a cabra cega insana de horror” (amargura, viadagem, imorais). Mas havia lágrimas, observei outra vez aqueles olhos – neutros, completamente. Diabólico, overdose e totalmente natural, improvisei umas palavras (vazias) e seus olhos disseram (eles falavam), “valei-me, Nosso Senhor”. Tive um medo. E os olhos repetiam, “valei-me Nosso Senhor”. Acordei, num suspiro.

Eu e o Ellyo Rios, Teatro do Sesi, 2007, foto do Rômulo

















Apontei-lhe o dedo em riste
Não percebeste, mas isso queria dizer
“É a tua vez”, entende?

Elas me enlaçaram


A banda de covers The Ziggy Soundz, A Lôka, SP, 2000








Do livro "A MELANCIA - Filmes Eróticos e algumas Epifanias"

A caça, não deixo rastro, mas afinal me enlaço. Elas me enlaçaram num cadafalso. Ei, por que fui lembrar disso agora? A morte me pedindo a cabeça, ali, estrangulada. Não tenha medo, é só um jogo de cintura, começar pela morte, entende, bem, vamos lá: o sol se punha, estávamos naquele momento dramático de fim-de-tarde, o lusco-fusco, a luz se indo, intensos raios acobreados, derradeiros, iluminando a paisagem funesta. O sol magnetizava o velho patamar e a forca, já consumada. Nessa hora extraordinária retinha-se ali, por força da luz, a vida, parecíamos vivos! Mas não, elas estavam vivas lá embaixo, assistindo a minha agonia... Eu não enxergava, eu estava morto, a cabeça dependurada, ó deus, mas isto é um sonho! (Thank’s my Lord).

O Tarô


Foto de Vidal Cavalcante















Do livro "Versos Cósmicos e Religiosos"

Jogo magnífico, impressionante como as cartas se amalgamaram ao meu pensamento e à resposta que eu já imaginara, antes, embaralhando as lâminas! O monge, a figura masculina em si, o arquétipo: Rei de Paus. O Mundo, o Julgamento, o Enforcado. Sacrifício e milagre, conhecimento: o servo do amor, a questão é. E o Carro, a Sacerdotisa, o Rei de Espadas, a Rainha de Espadas, o ano-que-vem! Estranho, me sinto tão bem, esse jogo foi real...

O Corpo


Com João Paulo e Adriano, Alma de Borracha, no Teatro Sesi, Maceió, 2007, foto do Ellyo Rios




O corpo de Walt Whitman caminhava pela avenida, nu e solitário, vagabundo, noturno, à madrugada, esquecido de sua cadelinha. Nenhuma carta mandara pra ela, nenhum beijo espacial, extra-temporal, nenhuma lembrança paradoxal, afinal Whitman era um homem, um poeta verdadeiramente boçal. Encontrara tantas cachorras, nenhuma como aquela, felizmente. Nenhuma tão demente, ela ficava em casa feito uma mulherzinha, ausente. Ah, ele voltara.

– Mas eu não sou uma mulherzinha, já lhe disse, nem mesmo uma cadela eu sou, veja bem o que tenho entre as pernas, é muito mais do que boceta: bagos, colhões, e uma bela de uma baguete.

– Baguete? Não me faça rir... Isso não me enche, não me preenche, me dê o seu cu, vá.

Gente. Eu vou ser mau, amiga, agora que estou sozinho com ele e mergulhei nessa rede de paixão. Tinha lido Proust, mas deixei você com um copo na mão, esperando a droga: precisava de cisma (pra segurar meu carisma), pois nasci assim tão só e você, por favor, não se iluda, deus lhe acuda e lhe dê um tanto de paz, talvez um casamento, oxalá, com o corpo que lhe apraz.

Antiguidade Clássica

Jeanne Moreau, não, Medéia, ela mesma, a rachada-bofe que nem minha amiga é, embora se passe por tal, freqüenta minha casa, me beija e pisca pro Walt. Ordinária se fazendo de santa, putinha é o que ela é, cacho do demo, odiosa, titica de galinha, e Walt, esse ignóbil, se desmanchando todo.

Conheço bem a glória de Juno, a beleza clássica, a essas alturas se enrijece toda num cárcere de gelo, não pode sair às ruas, não suporta o calor e é visceralmente alérgica à poluição, deus do céu, a estátua de Apolo não faz o menor sentido, nenhum sentido: imagina eu enterrado vivo com as esposas de um xá paulista.

Acontece que tudo isso, hoje em dia, é astrologia.

Epílogo

A amiga subiu as escadas ensandecida e quase se estrepou no ferro do portão, um décimo de segundo depois de o cão lhe dar um primeiro e definitivo bote. Por sorte, nada aconteceu a ela, não fosse por um arranhão no braço que por muito pouco, no pulo, não ficou espetado no ferro. Enfim, acudi-a e lhe dei guarida. Amiguinha, tive um pesadelo contigo esta noite e acabei tudo com o Walt – ele não acreditou, achou que era um capricho a minha revolta de cadela. Você que pôs este véu sobre o meu espírito sabe que não estou mentindo.

Medéia voltou. Ela que matou os filhos por uma besteira de amor, Medéia queria ser moça, Jeanne Moreau, brasileira. Era uma glória da arte exceto pelos pêlos queimados da boceta, rachada-mulher, o bofe – viu esse filme nos anos 1970? O cabelo dele em caracóis, todo enroladinho: ia pro seminário, mas entrou no exército verde, comeu uns soldadinhos e então resolveu casar.

O corpo de Whitman era a esperança do leproso: queria um amor que cuidasse da pele dele, pra sempre em Cristo, no céu, na terra, na cama e fora dela, nos prazeres da vida, na desgraça da morte, no além, no aquém, em cima, embaixo, dentro de mim, tão dentro quanto possível.